Artigo

Validade x exequibilidade: a assinatura digital é juridicamente segura?

Por Marcelle Penha, Ednaldo Almeida e Beatriz Maia dos Anjos

A pandemia da Covid-19 foi uma catalisadora da vida online. Seja por meio da popularização do home office, do fortalecimento do e-commerce ou da regulamentação da telemedicina, fato é que as soluções ofertadas pelo meio digital passaram a ser cada vez mais comuns em um mundo que, apesar de ser cada vez mais conectado, tornou-se fisicamente isolado por razões sanitárias.

Uma dessas soluções é a assinatura digital, espécie de assinatura eletrônica [1], difundida por inúmeras plataformas que oferecem esse tipo de serviço e que garantem, em tom uníssono, que suas assinaturas digitais possuem validade jurídica. Mas será que assinar um documento digitalmente é de fato tão seguro quanto fazê-lo fisicamente?

Se por um lado, com base no princípio da liberdade das formas (artigos 104, III, e 107 do Código Civil), segundo o qual a manifestação de vontade não dependerá de uma forma específica, salvo se exigido por lei, inexistem quaisquer dúvidas quanto à validade das assinaturas digitais [2], por outro, o cenário jurisprudencial sugere preocupante divergência quanto à sua exequibilidade.

Nesse sentido, em decisões recentes, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem restringindo a força executória desses documentos com fundamento em requisitos que, apesar de não estarem previstos em lei, estão sendo utilizados repetidamente em diversos precedentes.

No julgamento da Apelação nº 1033143-27.2018.8.26.0100 [3], a 37ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP entendeu que o contrato objeto da demanda constituiria um título executivo extrajudicial somente caso tivesse utilizado uma assinatura digital certificada pela ICP-Brasil ou por Autoridade Certificadora (AC) a ela regularmente credenciada, negando exequibilidade aos documentos assinados por assinaturas cujas certificações fossem emitidas por ACs privadas.

A 11ª Câmara de Direito Privado do mesmo tribunal, no Agravo de Instrumento nº 2289091-25.2019.8.26.0000 [4], ao constatar que a autoridade certificadora da assinatura utilizada no contrato havia sido descredenciada da ICP-Brasil ao tempo da sua utilização, reputou-a “irregular”, determinando a conversão da execução em ação de cobrança.

Da mesma forma, no Agravo de Instrumento nº 2271381-55.2020.8.26.0000 [5], o relator afirmou que a jurisprudência predominante “é no sentido de que não é possível equipar o documento assim assinado, por certificadora privada, aos documentos assinados por certificadores registradas no ICP-Brasil”.

Verifica-se, pela análise dos precedentes acima, que a jurisprudência vem diferenciando as assinaturas digitais a partir da autoridade certificadora que emitiu o seu certificado digital: se a ICP-Brasil ou uma de suas ACs credenciadas, o documento está apto a instruir uma ação de execução; se uma AC privada, o documento carece de exequibilidade e deverá instruir, necessariamente, uma ação de conhecimento.

Tais decisões são merecedoras de críticas porque vão de encontro ao texto expresso do diploma regulador da ICP-Brasil: o §2º do artigo 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 prevê que não fica impedida “a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”.

Fica claro, portanto, que a MP prevê a equivalência entre as assinaturas certificadas pelo ICP-Brasil e pelas ACs privadas, e não faz qualquer distinção quanto à validade ou à exequibilidade de cada uma delas. Pelo contrário: o dispositivo acima deixa claro que basta que a AC seja capaz de comprovar a autoria (garantia de autenticidade) e a integridade (certeza do conteúdo) da assinatura para que se submeta ao mesmo regime garantido à certificação da ICP-Brasil.

Os precedentes acima analisados, ao entenderem que a segurança e a confiabilidade necessárias para dotar um documento de força executória somente poderão ser atingidas quando o certificado da assinatura digital tiver sido emitido pela ICP-Brasil ou, quando muito, por uma AC que esteja credenciada a ela, não adentram a discussão acerca da autoria ou da integridade da assinatura digital utilizada no caso concreto e parecem se amparar unicamente na noção de que a certificação de uma autoridade pública é a única que poderá gozar de presunção de validade e exequibilidade.

Essa categorização das assinaturas com e sem certificado do ICP-Brasil foi, infelizmente, incorporada à legislação por meio da Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Em seu artigo 3º, incisos III e IV [6], a lei diferencia “certificado digital” de “certificado digital ICP-Brasil”, considerando, no artigo subsequente, a assinatura que utiliza o primeiro como “avançada” e a que utiliza o segundo como “qualificada”. Estabeleceu, ainda, no §1º do artigo 4º, que elas estariam hierarquizadas por grau de confiabilidade “a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos”, o que poderá consolidar o entendimento pela falta de executoriedade dos contratos que utilizem assinaturas digitais cujos certificados não forem emitidos pela ICP-Brasil ou uma de suas autoridades credenciadas.

O efeito prático das distinções criadas na jurisprudência e, agora, encampadas na legislação, é a existência de contratos devidamente assinados (artigo 784, III, do CPC) e que, ainda assim, são inexequíveis. Resultado este que, sem dúvidas, adiciona uma camada de complexidade a um dispositivo pensado para facilitar as contratações. Ademais, ainda que a positivação de inovações tecnológicas represente um desafio para o legislador e para a atividade jurisdicional, esta não é uma escusa válida para o descarte do rigor técnico e das categorias jurídicas existentes.

Nesse contexto, conclui-se que as promessas das plataformas de assinaturas digitais devem ser analisadas com cautela. Apesar da validade jurídica desse tipo de assinatura ser de fato reconhecida, a exequibilidade dos documentos que o utilizam vem sendo questionada. Por isso, recomenda-se utilizar aquelas assinaturas digitais certificadas pela ICP-Brasil ou uma de suas autoridades certificadoras credenciadas, cuja lista pode ser encontrada aqui.

[1] A assinatura eletrônica pode ser designada como qualquer tipo de manifestação de vontade que utiliza um meio eletrônico para validar as informações do seu emissor, como, por exemplo, a geolocalização, o carimbo de tempo e a identificação biométrica.

[2] Nesse sentido, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.495.920/DF  decidiu, por maioria, que contratos assinados digitalmente poderão até mesmo dispensar as testemunhas, a depender de outras circunstâncias: “O contrato eletrônico, em face de suas particularidades, por regra, tendo em conta a sua celebração à distância e eletronicamente, não trará a indicação de testemunhas, o que, entendo, não afasta a sua executividade.” (STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.495.920/DF. Rel. Min. Paulo De Tarso Sanseverino, julgado em 15/05/2018, publicado no DJe em 07/06/2018).

[3] TJSP, 37ª Câmara de Direito Privado. Apelação nº 1033143-27.2018.8.26.0100, Rel. Des. Sergio Gomes, julgado em 13/03/2019.

[4] TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2289091-25.2019.8.26.0000, rel. Des. Marino Neto, julgado em 11/04/2020, publicado no DJe em 11/04/2020.

[5] TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2271381-55.2020.8.26.0000, rel. Des. Ramon Mateo Júnior, julgado em 03/02/2021, publicado no DJe em 03/02/2021.

[6] “Artigo 3º – Para os fins desta Lei, considera-se: (…)
III – certificado digital: atestado eletrônico que associa os dados de validação da assinatura eletrônica a uma pessoa natural ou jurídica;
IV – certificado digital ICP-Brasil: certificado digital emitido por uma Autoridade Certificadora (AC) credenciada na Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), na forma da legislação vigente”.

 é advogada, mestranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) e sócia de Nunes Costa Advocacia.

 é advogado, mestre, doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), especialista em Direito Tributário e sócio de Nunes Costa Advocacia.

 é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) e trainee em Nunes Costa Advocacia.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

Imagem de Pete Linforth por Pixabay

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