Gigantes da tecnologia e startups avançam para sistemas de pagamento digital

GIGANTES DA TECNOLOGIA E DEZENAS DE STARTUPS AVANÇAM PARA SISTEMAS DE PAGAMENTOS DIGITAIS. PARA CIELO E REDE, LÍDERES EM TRANSAÇÕES COM CARTÕES, É UM DESAFIO… E UMA OPORTUNIDADE

Matéria originalmente publicada na edição de outubro de 2014 de Época NEGÓCIOS

O mercado brasileiro de pagamentos por cartões – sejam eles de débito ou crédito – é hoje dominado por dois grandes competidores. Cielo (a antiga Visanet, um braço da Visa) e Rede (antes Redecard, nascida da Mastercard) detêm 90% das transações feitas com cartões no país. Além da expressiva participação de mercado, essas empresas também exibem números invejáveis. No ano passado, a Cielo lucrou R$ 2,7 bilhões, 15% a mais do que em 2012. Desde que abriu o capital, em 2009, suas ações quadruplicaram de valor (no mesmo período, o Ibovespa avançou apenas 20%). Números como esses, apoiados por práticas de gestão moderna, levaram-na ao primeiro lugar do anuário Época NEGÓCIOS 360º, que premia as empresas de acordo com as principais dimensões relacionadas aos negócios. No caso da Rede, sua primeira oferta de ações, em 2007, ficou entre as maiores da bolsa de valores daquele ano. Cinco anos depois, o Itaú desembolsou R$ 12 bilhões para reassumir o controle e fechar seu capital.

Pode ser difícil, porém, manter esse sucesso estrondoso. O desenvolvimento de tecnologias digitais e a chegada de novos concorrentes não devem derrubar a dominação de Cielo e Rede – mas certamente podem abalar esse reinado. A competição vem de duas frentes. De um lado, estão empresas detentoras de tecnologias capazes de transformar smartphones e tablets em aparelhos para receber pagamentos com cartão. Chamadas (na falta de termo melhor) de subadquirentes, elas são, em sua maioria, pequenas startups, como a americana Square, a alemã SumUP e a sueca iZettle, que fazem intermediação de pagamentos. No fim de setembro, ao anunciar o Apple Pay, um sistema de pagamentos que permitirá que compras feitas em mais de 22 mil lojas dos Estados Unidos sejam pagas por meio do novo iPhone6, a Apple engrossou essa concorrência. A tecnologia à qual o novo iPhone6 aderiu é a Near Field Communication (NFC) e permite que o celular funcione como um cartão: basta aproximá-lo de um terminal com leitor NFC.

Na outra frente de competidores estão novas empresas que operam suas próprias redes, emitem os próprios cartões e distribuem suas máquinas (sejam as tradicionais ou as acopladas a smartphones e tablets), casos de Stone e First Data Corporation, que apostam pesado no Brasil. São, assim como Cielo e Rede, chamadas de adquirentes e fazem a conexão entre os bancos emissores e as bandeiras dos cartões.

O que as atrai é um cenário de forte expansão. Em 2007, segundo a Abecs, entidade que representa o setor, os cartões de crédito e débito movimentaram R$ 266 bilhões. No ano passado, esse valor ficou em R$ 853 bilhões e deve, pela primeira vez, chegar perto de R$ 1 trilhão em 2014. Raul Moreira, vice-presidente da Abecs, diz que “o Brasil tem condições de ter indicadores similares aos de países desenvolvidos como os Estados Unidos, onde mais de 40% do consumo das famílias é feito pelo cartão”. Por aqui, o índice é de 28%. Nos últimos cinco anos, o número de transações com cartões avançou 19% ao ano e deve crescer em torno de 15% nos próximos anos.

Sangue novo
A brasileira Stone, criada no ano passado pelos bancos BTG Pactual, Panamericano e o fundo Arpex Capital, já opera dois escritórios, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com centenas de funcionários. André Street comanda a operação. Ele tem 14 anos de experiência no mercado e foi o fundador da PagaFácil, empresa pioneira em pagamentos digitais do Brasil. Os primeiros clientes – empresas de comércio eletrônico – começaram a testar a nova plataforma de pagamento em junho. Entre os sites cujas transações eletrônicas são feitas sob responsabilidade da Stone estão a Rodeo West, que vende roupas e acessórios country, e a Ingresse, site de compra e venda de ingressos.

No primeiro semestre deste ano, a Stone comprou a startup Akatus, dona de uma tecnologia de Mobile Points of Sale (mPOS), que transforma smartphones e tablets em terminais de pagamento, substituindo a maquininha de cartão. Mas ela também distribui as maquininhas tradicionais, além de oferecer cartões da Visa e da Mastercard e tecnologias de caixas e automação. A ideia, portanto, é “jogar nas 11”, cobrindo todos os meios de pagamento. A Stone deverá estrear no mercado até o fim do ano.

Já a americana First Data Corporation, maior processadora de pagamentos e comércio eletrônico do mundo, penou por quase três anos para achar um parceiro local. O início das operações – que já consumiu R$ 330 milhões em investimentos – foi impulsionado pela parceria com o Banco Cooperativo do Brasil, que integra o maior sistema de cooperativas financeiras do país (Sicoob). A exemplo da Stone, a First Data atuará com maquininhas tradicionais, mPOS e tecnologia de automação para os clientes. O foco da empresa são companhias de pequeno e médio porte. Deborah Guerra, presidente, projeta que, em cinco anos, a First Data terá uma fatia entre 8% e 10% do volume de transações com cartões no Brasil.

O PayPal, por sua vez, aposta num mundo puramente digital. Desde o ano passado, o serviço de pagamentos digitais do eBay começou a negociar parcerias para finalizar compras usando sua tecnologia. Em São Paulo, por exemplo, é possível tomar um café no Suplicy ou tomar um táxi pelo 99Taxis usando só o celular. Na prática, o barista ou o taxista indicam qual valor deve ser debitado na conta PayPal, onde está cadastrado o cartão de crédito do cliente. Mario Mello, diretor do PayPal na América Latina, diz que vem negociando com uma rede de supermercados. Ainda é pouco, mas ele acredita que, até que o brasileiro se acostume com a ideia de comprar sem cartão ou dinheiro, o PayPal já estará com vários acordos fechados (cabe dizer que a empresa tentou trazer o Here, sua solução de mPOS ao Brasil, mas não encontrou um parceiro de distribuição).

A grande parte do dinheiro no setor de cartões está nos grandes varejistas, cadeias de restaurantes e supermercados. A questão é: será que as startups terão fôlego para chegar onde está o grosso do dinheiro? Fontes ouvidas pela NEGÓCIOS soam incrédulas. “Essas empresas já trabalham há muito tempo com Cielo e Rede, com contratos cheios de benefícios. Trocar toda uma base com milhares de máquinas faria sentido só com grandes bônus”, diz um ex-presidente de uma empresa de pagamentos. Até mesmo as startups parecem certas de sua limitação. “Qual é o papel que temos para a indústria? Servir o pequenininho. Meu alvo é quem movimenta R$ 1 mil por mês com cartões”, diz Igor Marchesini, diretor-geral da startup alemã SumUp no Brasil.

Ninguém fica parado
Enquanto novas empresas começam a explorar o mercado brasileiro, Cielo e Rede se mexem para não perder o trem do avanço tecnológico. A Cielo acaba de relançar o Cielo Mobile, que transforma os telefones celulares em terminais de pagamento. O produto foi lançado há dois anos, mas precisou ser reformulado porque os clientes resistiam em digitar as senhas dos cartões nos celulares de outra pessoa. A solução foi criar um pequeno terminal móvel para ser acoplado aos celulares, no qual o usuário insere o cartão e digita a senha. O lançamento foi feito em outubro do ano passado. Em agosto deste ano, a empresa investiu em comerciais no horário nobre da TV para ajudar a popularizar a ferramenta. O novo Cielo Mobile, apelidado de “chip e senha”, já tem 250 mil clientes.

A princípio, essa inovação é voltada para pequenos comerciantes, profissionais liberais e autônomos. O gadget é semelhante ao das startups, mas o modelo de negócios é diferente: o cliente não paga pelo aparelho. Paga uma mensalidade de R$ 11,90, mais taxas de transações. No modelo das startups, como a SumUp, o cliente é obrigado a comprar o aparelho, cujos preços variam de R$ 90 a R$ 400, dependendo da versão. As empresas ficam com uma parte das transações feitas pelo sistema (na média, 5%). Se o cliente quiser adiantar o recebimento dos ganhos, paga taxa de cerca de 9%.

Ao investir na solução móvel, a Cielo não corre o risco de canibalizar sua fonte de altos lucros? Dilson Ribeiro, vice-presidente de produtos e negócios da Cielo, diz que não há canibalização. “O que havia era sobreposição. Alguns clientes não precisavam de uma solução tão robusta e veloz quanto a tradicional maquininha. Fazia sentido optar pelo Cielo Mobile”, diz. Ele se refere, claro, aos pequenos estabelecimentos e aos profissionais liberais. Mas a ideia, num segundo momento, é “subir a barra”. A empresa já testa o produto em grandes varejistas. Ribeiro conta que uma rede de lojas de roupas femininas percebeu que boa parte das clientes desistia das compras no caminho entre o provador e o caixa. Muitas vezes, elas gostam dos produtos, mas como têm tempo para refletir até o momento de pagar pelas compras, pensam duas vezes e vão embora. Com o Cielo Mobile, a vendedora fecha a compra já no provador. “A cliente só precisa passar no caixa para pegar a nota fiscal e a sacola com as roupas”, diz Ribeiro. Num passo ainda mais ousado, a Cielo pretende entrar como sócia da Stelo, empresa criada pelo Banco do Brasil e Bradesco (acionistas da Cielo). A Stelo opera carteiras digitais nos moldes do PayPal. Ronaldo Varela, presidente da empresa, diz que esses bancos oferecerão aos correntistas a opção de criar contas na Stelo puxando todos os dados, incluindo nome, endereço e informações financeiras. A ferramenta será usada para fechar compras online e nos smartphones.

A Rede, que pertence ao Itaú, faz o mesmo percurso.  Em setembro, comprou a startup nacional maxiPago! para fortalecer sua plataforma de pagamentos para comércio eletrônico. Também aposta numa tecnologia idêntica ao Cielo Mobile chamada Mobile Rede, lançada em outubro. Milton Maluhy Filho, presidente da Rede, não acredita que as formas digitais de pagamento irão substituir totalmente a tradicional maquininha. “O que vemos são essas tecnologias trazendo novos clientes e não canibalizando o que já temos.” É o mesmo discurso da Cielo.

A empresa também tenta segurar o avanço das startups dando descontos nas máquinas tradicionais. Época NEGÓCIOS ouviu de diversos taxistas no centro de São Paulo que promotores da Rede passam em pontos de táxi oferecendo máquinas de graça por três meses e com desconto de 50% no primeiro ano.

Também de olho nesse mercado, o Santander comprou a GetNet, terceira colocada entre as adquirentes (com um pouco mais de 6% de participação de mercado) por R$ 1,1 bilhão em abril. A GetNet já era parceira do banco havia quatro anos. “A empresa não ficará restrita a pequenos e médios negócios”, diz Pedro Coutinho, vice-presidente de novos negócios do Santander. “Vamos atuar em toda a cadeia.”

Quem tem medo da Apple? 
A frase de Coutinho resume a estratégia não só da GetNet, mas também de Cielo e Rede. Para não serem passadas para trás, elas querem ter clientes de todos os portes e trabalhar com todas as tecnologias disponíveis. Por isso, em vez de brigar, pretendem se unir a novidades como o Apple Pay. Com ele, a Apple deseja popularizar a tecnologia Near Field Communication (NFC) e, quem sabe, aposentar os cartões de plástico. A Apple não definiu ainda quando levará o Apple Pay para fora dos EUA. O que se sabe é que quando chegar ao Brasil, terá de bater na porta de alguma adquirente. Elas estarão preparadas. Hoje, quase 80% das máquinas de Cielo e Rede são compatíveis com a tecnologia NFC.

A Apple não é a primeira empresa a tentar fazer com que você troque a carteira pelo telefone. Há três anos, o Google criou um serviço muito parecido, chamado Google Wallet. Sem acordos estratégicos e boicotado pelas operadoras, que bloqueavam os chips NFC dos aparelhos que vendiam, o Wallet nunca deixou de ser um produto de nicho. Agora, o cenário é diferente: a Apple firmou acordos com redes como Walgreens, McDonald’s, Macy’s e Nike, em um total de mais de 200 mil lojas pelos EUA. Também fechou com os bancos Citi, Bank of America, CapitalOne, Wells Fargo e Chase, e as bandeiras Visa, Mastercard e American Express.

O sistema da Apple não cobrará de lojistas e consumidores, diferentemente do PayPal e de outros serviços similares. A Apple ganha dinheiro com acordos fechados diretamente com os bancos para levar uma porcentagem de cada transação realizada, o que leva a duas conclusões. A primeira é que PayPal e companhia terão dificuldades no futuro para convencer lojistas e consumidores a continuar pagando uma taxa a eles. A segunda é que, seja com Apple Pay, cartões de crédito ou de débito, os bancos continuam a ganhar dinheiro. Tradicionalmente, quem incentivou ou freou a adoção de tecnologias de pagamento sempre foram os bancos, o que torna os acordos da Apple vitais para o Apple Pay. Foi assim na introdução dos cheques, dos cartões e, agora, da carteira digital. No fim das contas, uma nova forma de pagamento só chegará às suas mãos se os bancos concordarem.