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Um falso dilema

Por Miguel Reale Júnior

A comunicação eletrônica aproximou pessoas e flexibilizou fronteiras, com vídeos, fotos e textos de toda ordem sendo enviados aos milhões. O recurso necessário e constante às redes sociais e aos aplicativos de mensagens, nas mais diversas atividades, leva à questão acerca de poderem ser essas ferramentas de comunicação objeto de indevida vigilância, seja por órgãos estatais seja por particulares em invasão da privacidade. O debate sobre a necessidade de regras garantidoras de ambiente mais seguro e privado no mundo online foi importante para a Lei nº 12.965, que instituiu o Marco Civil da internet. A lei estabelece que o uso da internet no Brasil está fundado no respeito à liberdade de expressão e no desenvolvimento da personalidade, tendo por princípio a proteção da privacidade e dos dados pessoais. A internet é essencial ao exercício da cidadania e, por isso, deve ser assegurada ao usuário a inviolabilidade da vida privada, valores básicos na Constituição. A internet, todavia, também tem sido palco de crimes cibernéticos. Ganharam relevo a divulgação de fotos íntimas de artistas, fraudes contra usuários de sites de compras e de bancos, e o uso de aplicativos para comunicação entre membros de quadrilhas. Nesse contexto, merecem destaque as decisões judiciais que bloquearam o WhatsApp no território nacional, por não conseguir atender à determinação da Justiça de interceptação das comunicações, criptografadas de ponta a ponta, de usuários investigados. Haveria, então, dilema entre a proteção da privacidade das comunicações e a segurança pública no combate a criminalidade? Até quanto se justificaria sacrificar a intimidade de milhões de usuários para se garantir o sucesso de determinada investigação? Na verdade o dilema é falso e merece ser desmistificado. Não cabe admitir, como parece ao senso comum, que a proteção da privacidade das comunicações deveria ceder frente ao interesse coletivo por maior segurança pública. No confronto entre segurança pública e valores que integram a dignidade humana, como a privacidade, não se pode autorizar a violação desses valores, pelo Judiciário, de forma geral e sem o devido temperamento. Em um Estado Democrático, não se deve aceitar a existência de direitos absolutos e ilimitados. Direitos devem ser restringidos com razoabilidade e proporcionalidade, se necessário for para proteger outros interesses jurídicos. A revelação da intimidade de um investigado só se justifica se houver relação direta com circunstâncias do crime, constituindo dados absolutamente necessários a explicar a realidade do delito. Do contrário, não se pode aceitar a invasão na esfera privada de alguém, apenas por sua condição de investigado. Inaceitável também o risco possível de viabilizar­se, como subproduto, a quebra da criptografia de todos os usuários de um aplicativo. Grande parte do uso da criptografia dá­se hoje com base no modelo ponta a ponta, em que somente o emissor e o destinatário das mensagens contêm as chaves necessárias para a decriptação do conteúdo. Sem a criptografia ponta a ponta, as principais aplicações e facilidades da internet perderiam sua serventia. Isso vale, inclusive, na atividade pública. A entrega da declaração de Imposto de Renda para a Receita Federal depende da criptografia, sem contar o acesso aos processos eletrônicos por advogados, juízes e promotores. A criação de uma porta dos fundos na criptografia colocaria todos os usuários em risco de crimes das mais diversas naturezas, dado que o aplicativo é frequentemente usado para a troca de informações profissionais sigilosas, mensagens pessoais, fotos e vídeos do âmbito exclusivo da intimidade, e até mesmo para atos públicos, como intimações judiciais. Especialistas já alertaram que a introdução de vulnerabilidades intencionais em meios que são seguros, ainda que para uso do Estado (por exemplo, em defesa da segurança pública), fará com que ele se tornem vulneráveis também a terceiros. Abrem­se, desta forma, portas para que criminosos atuem contra as informações privadas de todos os usuários. Em suma, não se mostra razoável, sob o pretexto de fortalecer a segurança pública, defender a imposição de medida que propiciaria a multiplicação de delitos e fraudes, pois tal situação, contraditoriamente, atingiria a higidez da própria segurança pública. Por fim, um segundo falso dilema diz respeito à concepção de que a defesa das garantias de um indivíduo que está sendo investigado ou processado colida com a busca por eficiência da Justiça. A investigação não será menos eficiente se forem respeitados os direitos fundamentais do investigado ou de quem quer que seja. O Estado deve estabelecer maneiras de usar os meios necessários para garantir o direito fundamental à segurança sem, simultaneamente, possibilitar a violação de direitos de todos os demais cidadãos. O justo processo deve conduzir em prazo razoável a apurar o crime e a responsabilizar seus autores, mas assegurando ao investigado e a todos o exercício efetivo de seus direitos.

Miguel Reale Júnior é jurista, ex­ministro e professor titular de direito penal da Universidade de São Paulo

http://www.valor.com.br/legislacao/4927212/um-falso-dilema

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