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Segurança jurídica e assinaturas digitais

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Ricardo Campos*

Reconhecida pelo direito brasileiro há ao menos 20 anos, a ferramenta da assinatura eletrônica foi incorporada gradualmente ao cotidiano, até se tornar, nos dois últimos anos, uma tendência irreversível: o inevitável desenvolvimento tecnológico e as mudanças causadas pela Covid-19 fizeram com que diversas atividades se tornassem, por regra, digitais. Essa lógica aplica-se, inter alia, aos ritos associados aos negócios jurídicos. Se há alguns anos a assinatura eletrônica de documentos aparecia como exceção, hoje se percebe com facilidade como grande parte (senão a maioria) dos contratos é assinada em meios digitais.

Isso fica claro, por exemplo, em um julgamento recente da 6ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis. Trata-se de processo de execução fundado em um título extrajudicial, assinado eletronicamente pelas partes e cuja validade não foi reconhecida pelo juiz do caso. Embora, à primeira vista, o contrato pudesse ser considerado um título extrajudicial nos termos do Código Civil brasileiro, uma vez que foi assinado eletronicamente pelo devedor e duas testemunhas, não foi possível atestar a validade das assinaturas por meio do verificador de conformidade de assinaturas digitais do sistema ICP-Brasil. Nos termos da decisão, “o mero aceite em sítio eletrônico, sem nenhum certificado de autenticidade reconhecido por autoridade certificadora legalmente constituída, não constitui meio idôneo para aferir a efetiva manifestação de vontade do devedor em relação aos termos do contrato”.

Imbróglios como esse podem ter origem em uma disposição normativa brasileira que, em tese, permite às partes contratantes a faculdade de dispensar as formalidades inerentes à assinatura digital. Nos termos do Art. 10, §2º, da Medida Provisória 2.200-2/2001, as partes são livres para utilizar meios de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, “desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”. Essa forma de assinatura, denominada “assinatura eletrônica avançada”, tem encontrado cada vez mais espaço nas mais diversas relações contratuais e, com isso, suscitado debates cada vez mais complexos em torno de sua legitimidade. Para o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, não seria possível “reconhecer a executividade de contrato eletrônico assinado digitalmente na hipótese em que os contratantes não utilizaram assinatura certificada conforme a ICP-Brasil”.

A própria MP 2.200-2/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), em seu Art. 10, §1º, estabelece como regra a presunção de veracidade para os documentos eletrônicos produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil. Dessa forma, estabelece-se certa hierarquização do nível de segurança jurídica trazida pelas diferentes espécies de assinatura eletrônica, sendo a assinatura eletrônica qualificada (“assinatura digital”) aquela que goza de maior confiabilidade. Tanto é que a Lei 14.063 de 2020, que dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas, determina que o uso da assinatura eletrônica qualificada é obrigatório em uma série de situações, como, entre outras hipóteses, nos atos assinados por determinadas autoridades públicas, nas emissões de notas fiscais eletrônicas e nos atos de transferência e de registro de bens imóveis.

Pensando em termos de segurança jurídica para um contexto de transformação dos meios da sociedade, previsões como essa são imprescindíveis para garantir que a “constelação mediática” que surge com as novas tecnologias digitais não se sobreponha a valores fundamentais da sociedade. Afinal, a segurança jurídica – que pode ser definida como o “conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida” – é de crucial importância em cenários de transformação. Mas que isto fique claro: buscar segurança jurídica não significa agrilhoar as tentativas de inovação e a (r)evolução tecnológica. Pelo contrario: significa garantir a sociedade proteção contra externalidades negativas e impensadas dentro do processo de transformação.

O uso de tecnologias de assinatura digital não advém como uma tentativa de eliminar as assinaturas físicas; trata-se, na realidade, de mais um elemento na constelação mediática à nossa disposição. Ainda que a assinatura digital viesse “eliminar” a assinatura física, sua essência – que é a necessidade de autenticidade, a busca pela certeza garantida pelo ato formal – não deve ser, nem será eliminada. A segurança jurídica funciona como uma amarra entre “passado” e “futuro” (ou seria presente?), impedindo que situações de incerteza gerem consequências indesejadas para a sociedade. Paradoxalmente, o que temos observado são iniciativas que perdem de vista construção e a busca por elementos sólidos de segurança jurídica. Não se pode falar em redução de custos de transação ou desburocratização se não se garante a devida segurança para a população construir seus laços no mundo digital com impacto direto na sua vida analógica.

Um exemplo negativo é a MP 1.085/2021, que permite o envio de informações aos registros públicos, quando realizado pela internet, com assinatura avançada, sem observar o padrão ICP-Brasil, sendo dispensado o reconhecimento de firma para o registro de títulos e documentos, cabendo exclusivamente ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular. Paradoxal e ilegalmente, a MP contraria os Poderes Legislativo e Judiciário, que, em diversas outras situações, optaram por medidas opostas: de acordo com a Lei 14.063/2020, é obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada “nos atos de transferência e de registro de bens imóveis” (art. 5º, §2º, IV); a LRP, por sua vez, determina que “[o] acesso ou envio de informações aos registros públicos, quando forem realizados por meio da rede mundial de computadores (Internet) deverão ser assinados com uso de certificado digital, que atenderá os requisitos da ICP-Brasil” (art. 17, parágrafo único); e, seguindo os parâmetros legais delineados, o Provimento 100/2020 do CNJ também exige o uso de assinatura qualificado no âmbito do e-Notariado.

O uso da assinatura qualificada em determinadas hipóteses foi apontado pelo legislador com o objetivo de garantir segurança jurídica por ocasião da realização de negócios em ambientes eletrônicos, principalmente aqueles referentes a bens jurídicos dotados de maior proteção legal.

O que casos como a decisão citada no início deste texto e as incompatibilidades das disposições da MP 1.085/2021 com o regime legal vigente nos demonstram é que a busca pela segurança jurídica por meios seguros, tecnológicos e digitais deve estar na ordem do dia. Se as transformações dos meios da sociedade são, de fato, irreversíveis – e bom que as sejam -, é preciso que o direito se posicione adequadamente nesse contexto: não “atrás” dos avanços tecnológicos, como de praxe, mas sim como o elo entre princípios jurídicos tão caros à ordem social e as inovações trazidas pela tecnologia e consequente migração de atividades humanas para os ambientes digitais.

A segurança jurídica dos novos meios da sociedade, deve caminhar junto com inovação e o uso das novas tecnologias. Todo movimento de desburocratização necessita de caminhar junto com a construção da segurança jurídica nos meios digitais, caso contrário, gerarão um ambiente de negócios e de relações pessoais sem confiabilidade com severas externalidades negativas para grande parte da população.

*Ricardo Campos, professor de direito na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). É também mestre e doutor em direito pela mesma universidade

Artigo originalmente publicado no blog de Fausto Macedo, no site do Estadão.
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