O longo caminho para se tornar um hospital 100% digital

Por Katia Simões | Para o Valor, de São Paulo

Um desafio de peso: eliminar 100% o papel e usar assinatura eletrônica em toda a cadeia de serviços, desde o momento que o paciente entra no hospital até a alta médica. O trabalho é árduo, demorado e envolve não só investimentos robustos na implantação de novas tecnologias, equipamentos modernos e sistema de informação como, também, uma mudança de cultura de toda a organização, principalmente do corpo médico. “O hospital 100% digital é aquele onde não tramita mais papel internamente, onde se faz tudo eletronicamente por meio de um conjunto de sistemas que dão suporte à operação e à tomada de decisão médica e da equipe de enfermagem”, afirma John Daniels, vice­presidente global da HIMSS Analytics, entidade responsável pela certificação internacional Eletronic Medical Record Adopton Model (EMRAM). “O uso da tecnologia da informação não é um projeto da equipe de informática, é uma tarefa de todos, encabeçada pelo CEO”.

A certificação EMRAM prevê a incorporação progressiva de tecnologias ao processo assistencial, que passa por estágios evolutivos em uma escala de 0 a 7. Um hospital no nível 0, por exemplo, não possui nenhum tipo de sistema de tecnologia de assistência ao paciente. No nível 7, ao contrário, o processo é 100% digital. O uso da tecnologia da informação nos hospitais brasileiros baseadas na certificação da HIMSS é ainda tímida. Até setembro de 2014, apenas nove instituições privadas haviam sido classificadas. No primeiro quadrimestre deste ano, 12 hospitais nacionais já estavam classificados no estágio 6 e apenas um certificado no grau 7.

Daniels afirmou que o desafio de se tornar um hospital 100% digital não está ligado diretamente ao tamanho da instituição, mas ao seu grau de envolvimento tecnológico. “Muitos já contam com prontuário eletrônico, mas esbarram no complexo sistema de administração de medicamentos”, diz. “Cada medicamento precisa ser identificado por código de barras, a fim de alinhar a prescrição com o código usado pelo paciente. Não dá para integrar toda a operação sem um sistema único de código de barras”. A integração de toda a cadeia, segundo ele, permite que se reduza a zero o número de erros na administração de medicamentos. Com 132 leitos, o Hospital do Idoso Zilda Arns, de Curitiba, é a primeira instituição 100% SUS do Brasil a receber a certificação grau 6 na escala de avaliação HIMSS. O hospital, aberto em 2011, foi planejado para ter todos os seus processos de forma digital e conta, entre outros mecanismos, com prontuário eletrônico do paciente, checagem de medicação beira leito por meio de código de barras, sistema de alerta contra erro de medicação, dosagem e horário.

Além disso, todos os exames de imagem e clínico­patológicos podem ser acessados pelo médico eletronicamente, descartando a necessidade de papel. “A digitalização foi mais fácil porque já nascemos com esse desenho, mesmo sendo uma instituição de saúde pública”, diz Everton Zanella, coordenador de TI da Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde de Curitiba. “Embora na esfera pública os processos sejam mais difíceis, conseguimos provar que é possível mudar a realidade, com benefícios claros para a população”. A dificuldade de mudar processos e a cultura de uma instituição consagrada no mercado foram sentidas na prática pela Beneficência Portuguesa, que administra três hospitais, dois deles já classificados no nível 6, quase sem uso de papel. “O maior desafio foi o da implantação do sistema no Hospital Beneficência Portuguesa, o maior e o mais antigo dos três”, afirma a CIO Lilian Hoffmann. “Embora já trabalhássemos com prontuário eletrônico, não tínhamos as áreas de dosagem de medicamento, imagem e laboratório integradas”, afirmou. A saída foi trabalhar por etapas e, em março deste ano, o hospital eliminou 100% o uso de papéis na UTI.

Para chegar ao nível 7, de acordo com a executiva, o hospital precisa resolver o gap da administração do volume de informações. “Temos ainda uma grande dificuldade de entender como os dados podem nos ajudar na tomada de decisão com segurança”, admite. Parece simples, mas no dia­a­dia não é. Com 50 hospitais espalhados pelo Brasil, desses 46 atendendo basicamente o SUS, a Sociedade Beneficente São Camilo vem trabalhando para replicar o modelo nível 6 para as unidades da cidade de São Paulo. “A TI é o veículo para essa mudança, mas as pessoas precisam ser treinadas e engajadas”, diz Klaiton Simão, CIO do Hospital São Camilo de São Paulo.

Recife tem o primeiro hospital certificado 100% digital
Por Katia Simões | Para o Valor, de São Paulo

Inaugurado em 2011 dentro da concepção digital, o Hospital Unimed Recife III, com 202 leitos, é a primeira instituição da saúde certificada 100% digital no Brasil, a primeira na América Latina e uma das únicas fora dos Estados Unidos a exibir o selo da HIMSS. “Foram dois anos ajustando e implantando tecnologias para garantir a automatização completa de processos e, principalmente, propondo mudanças estruturais para aprimorar o atendimento ao paciente”, afirma Fernando Cruz, diretor médico. Entre as principais ações adotadas pelo Hospital estão o aprimoramento do circuito fechado de administração de medicamentos a partir da adoção de dupla checagem à beira leito. “Tudo o que é administrado ao paciente, como medicamentos, sangue e nutrição parental, por exemplo, é feito com segurança e automaticamente registrado no prontuário eletrônico”, diz Cruz. “Na UTI, os 40 leitos contam com prontuário eletrônico integrado, todos os sinais vitais são monitorados e transferidos eletronicamente”. Também foram incluídos novos protocolos clínico­assistenciais no sistema de gestão, o que permite um maior direcionamento nas condutas médicas.

De acordo com Cruz, os alertas emitidos automaticamente – entre eles, alta dosagem de remédios, manifestações alérgicas, influências de drogas em exames ­ não só ajudam as equipes no atendimento ao paciente, como possibilitam uma gestão mais efetiva do cumprimento dos protocolos e suas justificativas. O diretor médico da Unimed Recife III admite que o desafio maior na passagem do nível 6 para o 7 foi estender o sistema integrado também para o setor de emergência. Para chegar a este estágio, o hospital investiu R$ 1,5 milhão em equipamentos e sistemas. Cada equipamento na UTI custou R$ 7 mil o que tornaria inviável a integração da emergência. A saída foi implantar a solução em smartphones, com leitor de QRCode. “No começo, os pacientes achavam que o profissional estava se distraindo com o telefone, mas depois entenderam que fazia parte do processo”, afirma Cruz. “Hoje, operamos com mais de 8 mil atendimentos na emergência adulto por mês, com muito mais assertividade e segurança”. Os resultados são comemorados, entre eles, os da redução da dispensa de medicamentos que caiu de 21 minutos para 8 minutos, e o tempo da reavaliação, que diminui 12 minutos. Sem contar a redução de oito dias de internação por pacientes com fratura de fêmur, que resultpu numa economia de R$ 1,2 milhão desde a certificação no nível 7 no ano passado.

Vasco Antunes Pereira, CEO do Hospital de Cascais, de Portugal, enfatiza que o hospital sem papel é uma consequência de processos bem implementados. “A receita é buscar a melhora contínua dos processos e do uso correto da tecnologia, sem se deixar acomodar quando atinge o nível máximo, ou seja, torna a instituição 100% digital”, diz. “Contamos com 80 indicadores clínicos e financeiros, que são acompanhados diariamente para garantir a qualidade do uso da tecnologia centrada no doente”. O hospital de Cascais é público, conta cm 277 leitos, realiza uma média de 9.000 cirurgias, 2.600 partos e 172.000 urgências por ano. É um dos quatro únicos hospitais europeus a obter a certificação grau 7. Os outros três estão na Holanda, Turquia e Espanha.

Tecnologia é arma para reduzir erro médico
Por Françoise Terzian | Para o Valor, de São Paulo

Nos últimos 10 anos, os Estados Unidos implementaram sucessivas regulações para impor o uso do EHR (electronic health records), os chamados registros eletrônicos de saúde, uma saída para aumentar a eficiência da saúde e combater erros como os cometidos pelos médicos. Um mal relatado pelo americano John Daniels, vice­presidente global da HIMSS Analytics, que viaja o mundo inteiro, incluindo o Brasil, visitando hospitais. Defensor do uso da tecnologia como estratégia para aprimorar os cuidados com os pacientes, ele palestrou durante a Hospitalar 2017. Sua apresentação teve início com dados alarmantes. Em 1999, 98 mil americanos morriam nos hospitais anualmente em decorrência de erro médico — leia­se diagnóstico equivocado e administração imprópria de medicamentos.

Em 2016, esse levantamento voltou a ser realizado e revelou uma piora de cenário. Mais de 251 mil pacientes vieram a óbito no país por erro médico, a terceira maior causa de morte após as doenças de coração e do câncer, conforme os dados apresentados. Por trás desse volume alarmante de mortes, ele explica que há médicos que sofrem da falta de informações completas e atualizadas em tempo real. Tanto do histórico dos pacientes quanto da literatura médica. Ou seja, não há tempo hábil para tomar decisões imediatas. Daniels explica que para o acesso às informações melhorar e ser igualitário, é imprescindível realizar investimentos em TI, a exemplo do Modelo de Adoção de Prontuário Médico Eletrônico (EMRAM). Embora a tecnologia seja uma grande propulsora da saúde, a questão financeira é uma barreira global em praticamente todos os países.

Após investimentos, os Estados Unidos acumulam, no momento, 281 hospitais operando no nível 7 do EMRAM, o que representa 4,8% da base. Isso significa que operam sem uso de papel e com inteligência que extrai as informações com análise dos bancos de dados dos pacientes. Em 2006, o país não tinha um único hospital neste nível. “Demorou uma década para os EUA fazerem essa evolução. É preciso comprometimento. O Brasil encontra­se hoje no estágio em que os EUA estavam em 2006. É preciso que haja incentivo”, recomenda Daniels. A Unimed Recife, no entanto, é o único do Brasil a operar no nível 7. Há dois ou três hospitais no país se aprimorando para pular para o sétimo.

O nível 7 é altíssimo e ainda é uma exceção se considerado que a maioria dos hospitais no Brasil e nos EUA ainda opera em nível 2 — com muito papel e baixa informatização. “Nos níveis 6 e 7, os investimentos realizados no prontuário eletrônico começam a trazer resultados. Não só na área clínica, mas também na administrativa”, observa Daniels. Hoje, há outros 11 hospitais em estágio 7 no mundo e eles ficam na China, Europa e Arábia Saudita. A partir deste estágio, ele alerta que é necessário dar continuidade ao trabalho para impulsionar os benefícios. Com a ajuda desse sistema, o médico consegue ver mais facilmente o real risco de o paciente sofrer um tromboembolismo venoso, por exemplo. O hospital, por sua vez, consegue monitorar e avaliar os procedimentos médicos, observando se suas atitudes estão em conformidade com os protocolos recomendados.

Estudos e experiências práticas nos hospitais revelaram ainda que há uma correlação direta entre bancos de dados com informações inteligentes extraídas e a rotina de um hospital, com taxas de mortalidade menores quando a tecnologia é usada corretamente. Um dos cases mundiais da área vem do Reino Unido, pioneiro na implementação de tecnologia da informação no ambiente de saúde. Os projetos de EHR datam dos anos 70, transformando essa nação na primeira do mundo a pensar no Registro Único do Paciente como projeto público.

Segundo Beverly Bryant, diretora de transformação digital da NHS Digital (órgão executivo público que se reporta ao Departamento de Saúde), esse sistema é fundamental para cuidar de uma população que cresce e envelhece. Hoje, 70% investimento em saúde são voltados para o tratamento de doenças crônicas como diabetes. “O prontuário eletrônico é a base de tudo, os alicerces. Ele precisa ser usado no Brasil não só na assistência primária, mas também na secundária que faz uso de muito papel”, alerta Beverly.

Estudo revela que indústria farmacêutica caminha para a disrupção
Por Françoise Terzian | Para o Valor, de São Paulo

O setor de saúde tem se movimentado rapidamente rumo à adoção das chamadas tecnologias digitais. Em dois anos, 93% dos médicos dos EUA usarão registros médicos eletrônicos — 30% a mais que há dois anos. E isso não é tudo. Cerca de 97% deles terão acesso eletrônico aos protocolos de tratamento, mais que o dobro da taxa de 2011, de acordo com pesquisa conduzida pela Bain & Company. Não são só os clientes das farmacêuticas que estão mudando. As ferramentas e os dados digitais também estão transformando a indústria farmacêutica, permitindo com que ela atue de forma mais rápida, barata e eficiente no desenvolvimento e na pesquisa de drogas ao mesmo tempo em que traz benefícios às áreas de produção e comercialização.

De acordo com Kai Grass, gerente­sênior de saúde na Bain&Company no Brasil, a indústria farmacêutica está assumindo novos e inovadores papéis e, mais do que isso, disruptivos. Se antes, o médico tomava as decisões sozinho, hoje ele segue protocolos antes de decidir. Não por acaso, muitas empresas do setor agora contam com um chief digital officer em sua alta cúpula de diretores. “O consumidor, por exemplo, tem se adaptado ao canal digital para se informar e isso vai explodir nos próximos anos”, conta Grass. Dados do mundo real já deram início a uma disrupção, por exemplo, na abordagem como o reembolso médico é conduzido, exigindo novas evidências além dos exames de laboratório.

No futuro, apenas as empresas que fazem uso de dados do mundo real para demonstrar resultados superiores para novos medicamentos irão gerar retornos atraentes. Muitas empresas começaram a usar ferramentas digitais em partes do negócio. A Novartis, por exemplo, está investindo em empresas de saúde digital em estágio inicial. Isso ocorre em parceria com a Qualcomm Ventures. E também se associou com o Walgreens para recrutar participantes em ensaios clínicos de uma base de dados de 100 milhões de clientes da rede de farmácias. Agora, o ritmo da mudança está se acelerando. O investimento em saúde digital quadruplicou nos últimos quatro anos, atingindo mais de US$ 5 bilhões em 2014. A IBM e Apple, por sua vez, aderiram à corrida com projetos destinados a criar bancos de dados de saúde que visem reunir dados para a cura.

Nos próximos cinco anos, a maioria dos provedores de saúde dos Estados Unidos terá migrado suas estratégias para o digital, a exemplo das farmacêuticas. De forma geral, novas ferramentas clínicas e práticas estão sendo adicionadas rapidamente, tendência que deve continuar. Dentre as apostas do mercado, destaque para os investimentos em telemedicina, iniciativas de transparência, monitoramento remoto de paciente, análise preditiva, dados comparativos com real eficiência, programas de saúde e bem­estar acesso eletrônico a protocolos de tratamento e dados médicos, dentre outras iniciativas. Criar uma estratégia digital abrangente não é tarefa fácil em meio a todo barulho em torno do tema “transformação digital”. Algumas empresas se sentem sobrecarregadas e paralisadas pelo desafio. Outras correm rapidamente contra o tempo e sem estabelecer prioridades. Em uma empresa farmacêutica global, a Bain&Company encontrou mais de 2000 projetos digitais e 2.000 sites relacionados, muitos dos quais não tinham a necessária coordenação. A equipe de liderança não tinha visão geral das atividades e, como resultado, obteve poucos benefícios.

Valor Econômico